Dando continuidade a análise da evolução do ativo circulante entre os exercícios de 2020 e 2019 e o que já foi reportado no primeiro trimestre de 2021, chegou a vez de discutirmos o contas a receber, que para fins de apresentação eu consolidei em uma única linha:
No balanço publicado, isso é aberto em duas linhas: o contas a receber propriamente dito e um contas a receber específico sobre a venda de atletas a prazo.
A evolução do contas a receber é um dos fatores primordiais para construirmos uma ponte entre superávits contábeis e rombos no fluxo de caixa financeiro. Por norma, o clube reconhece vendas parceladas de forma imediata. O valor é registrado no contas a receber, no curto e longo prazo, ou circulante ou não circulante conforme a nomenclatura atual, em contrapartida da receita do exercício. Esse contas a receber será reduzido na medida que as parcelas sejam pagas, contra caixa.
Exemplificando:
Vendo um atleta promissor por $90k euros e parcelo esse recebimento por 3 anos. Vamos supor que sejam 3 parcelas iguais a cada ano.
Na contabilidade reconhecerei $90k como receita do exercício corrente.
No fluxo de caixa efetivo, só terão entrado $30k. Há um gap de $60k entre o superavit/deficit contábil, indicado na demonstração dos resultados e usado efusivamente nas narrativas e o fluxo de caixa. O clube apura um resultado contábil “muito melhor” que o financeiro. Contabilidade não paga contas.
Ainda há outro fator inerente a isso que máscara o resultado contábil. Eu vendo atletas em Euros, mas minha moeda funcional é o Real. Um euro varia entre a venda e o recebimento, pulando de 5 para 6 reais. Eu tenho ganhos financeiros, decorrentes de variação cambial.
O resultado financeiro é afetado positivamente por mera desvalorização da moeda brasileira, incrementando o saldo a receber. Em hipótese alguma o gestor pode se vangloriar que reduziu as perdas financeiras, pois isso ocorre de forma duplamente passiva. Primeiro porque ele não tem gerência sobre a taxa de câmbio (ela pode mudar o viés de alta para baixa e agravar as perdas financeiras, por exemplo). Segundo que o parcelamento não é estratégico, mas imposto pelos compradores. O parcelamento pode até atender a anseios eleitorais, com concentração de entrada de caixas no ano do pleito, mas isso tudo é mais acidental que planejado.
Poderia até citar um terceiro ponto, que não faz muito sentido, tendo um rombo de caixa colossal, permitir parcelamentos tão longos. O gestor abre mão de um talento promissor por problemas de caixa e posterga a entrada de recursos, Gerencialmente me parece um erro colossal, até porque a venda costuma ser a valores mais baixos decorrente da asfixia financeira que o clube se encontra. Valores perfeitamente quitáveis a vista pelos compradores europeus.
Notem que as bonificações futuras sobre performance do atleta vendido não são contabilizadas no momento da celebração do contrato. Isso vai quase funcionar em regime de caixa, só constituindo contas a receber se os contratos tiverem algum gapentre apuração de performance e pagamento da bonificação. Mas essas bonificações costumam ser adiantadas em decorrência da asfixia financeira, podendo até acontecer com descontos pela antecipação direta ou por intermédio de agentes financeiros.
Vamos seguir na analisar dos saldos que compõe o contas a receber, usando as duas notas explicativas do balanço de 2020. As pessoas deveriam ter o hábito de ler essa notas.
Notem que tudo que escrevi acima sobre o reconhecimento de receita na venda parcelada de atletas também é válido para esses contratos de licenciamento.
Analisar as flutuações de saldo de contas a receber no Fluminense é uma tarefa árdua, pois as últimas gestões tem o péssimo hábito de manter em sigilo os valores dos contratos de seus patrocínios, parcerias e permutas.
Por outro lado, se identifica, a meu ver, dois problemas que merecem destaque.
Em 2020 o Fluminense arbitrou um contas a receber de 11 milhões a título de premiação do Campeonato Brasileiro. Não apresentam os critérios para ter reconhecido esse valor parcial, que só foi definido de fato e direito no mês de fevereiro. Há inclusive uma nota de eventos subsequentes para isso:
É muito complicado aceitar esse reconhecimento. A própria Demonstração Financeira traz como nota que o evento ocorreu após o encerramento do período. Há incerteza de sobra sobre a quantificação dessa receita em 31/12 e, portanto, ele deveria ter um tratamento muito semelhante a ativos contingentes, ou seja, ser reconhecida por caixa.
Assim, a meu ver, com base na absoluta falta de informação das notas e políticas adotadas, a receita do Fluminense foi superavaliada em 11 milhões em 2020.
Há muita discussão sobre se é correto ou não, em função da pandemia, causar essas discrepâncias, mas a contabilidade e suas regras são inflexíveis e não estão sujeitas as narrativas dos modelos associativos de clubes de futebol. Quando muito podem ser agraciadas com umas normas contábeis da APFUT, como ocorreu, bisonhamente, em 2016-17 com as luvas de renovação do contrato de TV. Mas nesse ano não há qualquer indicativo que esse tipo de lançamento tenha sido endossado, muito menos citação de norma ou regra específica nas notas. Fica de fato a impressão que foi criada receita, e a meu ver, os $26.4 milhões são receitas do exercício de 2021. Estou aberto a críticas e explicações que me convençam do contrário.
Existe ainda uma provisão para perdas em cerca de 14 milhões. Isso é um problema antigo com a DryWorld. Nesse instante vamos pular esse assunto, a perda está provisionada e isso tudo é pertinente a exercícios passados. DryWorld, Valle Express, Vitton, Azeite Royal e até mesmo casas de apostas serão objetos de edições da FLUCONOMiCS.
Não temos ideia da composição de outros contas a receber. Apesar de representarem quase 15% do saldo líquido da conta, não tem abertura, não tem explicação, não tem nada que sustente a falácia que o Fluminense é o clube mais transparente do universo.
Sem informações, só nos restam incertezas. E nesse ambiente de reconhecimento arrojado de receitas, isso passa a ser mais um ponto de atenção.
Fechando a composição do contas a receber, temos a parte referente a venda parcelada de atletas:
Não há muito o que escrever aqui depois do que já foi explicado no início dessa edição.
O saldo vem crescendo ano após ano devido ao acumulo de parcelas das vendas para tirar a corda do pescoço. Em entrevistas foi sinalizado que alguns desses valores estão em atraso e que as cobranças são do tipo amigáveis. Não há menção desses atrasos nas notas explicativas e não constituíram qualquer provisão. Há um risco de excesso de flexibilidade no não reconhecimento de perdas, mas mais uma vez a opacidade dá de 7×1 na transparência. Não podemos ir muito além na análise desses saldos em aberto.
Vale ressaltar que reconhecer perdas sobre esses valores também trairiam impactos negativos na receita de variação cambial apurada, que foi extremamente favorável a narrativa do gestor em seu equivocado argumento de redução das despesas financeiras líquidas.
Pensando em trimestres, agora que o Real ameaça uma recuperação frente ao Euro, serão apuradas perdas de variação cambial. Esperem por um resultado financeiro no terceiro trimestre pior e se divirtam com a narrativa que será usada. Eles normalmente publicam o terceiro trimestre praticamente junto do anual, e isso pode passar desapercebido.
Aparentemente ocorreu o recebimento de alguma parcela significativa no primeiro trimestre de 2021, afinal o saldo sofreu forte redução. Mas o trimestral não explica muita coisa. Viva a transparência!
Despesas Antecipadas e Outros Ativos
Despesas antecipadas crescentes também me preocupam, em função da sistemática dos registros e o risco inerente do resultado sofrer algum impacto indevido.
Despesas antecipadas são desembolsos de caixa que em vez de serem classificados como despesa do exercício, são lançadas a débito da conta de ativo e reconhecidas ao resultado de forma paulatina, de acordo com a natureza de cada antecipação de gastos. Em teoria, é mais um prato cheio para manipulação de resultado.
O Fluminense chama as despesas de antecipadas de adiantamentos a fornecedores. Dá na mesma, eu prefiro a nomenclatura antiga.
Em outros ativos circulantes, eu inclui a conta de estoques. Ela vive aparecendo e desaparecendo nos anuais e trimestrais.
O que podemos falar sobre a variação desses saldos?
Nada!
O transparente Fluminense não faz notas explicativas sobre eles:
Mais de 10% do saldo do circulante. E sem explicações. O saldo mais que dobrou de um exercício para o outro e se olharmos para o trimestral, ele praticamente triplicou. mais despesa ativada cujo impacto no resultado foi postergado. Se é correto ou não, jamais saberemos. Mais um salve para transparência!
“Crossover” de edições
Relendo toda edição, percebi que ela foi se tornando extremamente ácida. Apesar dos esforços para torná-la o mais imparcial possível, ainda fiquei com a impressão de que essa edição é uma das mais pesadas escritas até hoje. Efeito colateral de ser torcedor, não de verdade segundo os dogmas do modelo associativo, mas sigo torcendo. É muito irritante ver os rumos que o Fluminense vai tomando.
Para entender minha abordagem na análise dos balanços é preciso ler as demais edições. Além dos assuntos se cruzarem, eu descrevi minha trajetória profissional. As principais estão com acesso liberado.
Tenho décadas de experiência em auditoria e sobretudo em investigação. Meu foco sempre foi e sempre será achar as brechas e os erros. As análises refletem a minha natureza investigativa. Não falta gente no mercado para tecer elogios e passar pano. O foco aqui é outro.
Eu não sou infalível. Caso algum comentário seja indevido ou inadequado, por favor entrem em contato. Mas o façam de forma substanciada.
Como diria o sábio Abad: “palavras o vento levam”. Apresentem documentos e normas. Ou em outras palavras, sejam transparentes.