Provavelmente todos tiveram o desprazer de ler isso aqui, uns dias atrás:
“Os clubes estão sendo vendidos, em média, entre R$ 400, 500, 600 milhões. O Fluminense, só nos últimos cinco ou seis anos, só em venda de jogadores, vendeu algo em torno de R$ 650 milhões. A nossa diferença para os outros é que temos uma base formadora muito boa e conseguimos, obviamente, nos manter de pé. O estudo do BTG faz um valuation do Fluminense e a gente acredita que só Xerém vale algo em torno de R$ 1 bilhão. Não existe nenhum número, é uma situação hipotética, o estudo não está pronto, mas o Fluminense não vale menos de R$ 2 bilhões na nossa cabeça, sem fazer um estudo e na cabeça da instituição financeira também.”
Vamos desconsiderar que o próprio discurso se contradiz várias vezes: tem estudo, não tem estudo, não tá pronto, não tem número, mas vale 2 bilhões sem fazer estudo… e que a instituição financeira não valida isso publicamente, muito menos endossa essas declarações de alguma forma.
A proposta dessa edição é discutir os métodos e os possíveis valores, para avaliar o quanto cretina é essa nova narrativa.
MÉTODOS TRADICIONAIS
Todo processo de avaliação do valor de um negócio pode ter 3 abordagens tradicionais:
- O valor de mercado das ações (quando o negócio tem ações);
- Fluxos de caixa descontados; e
- Bankruptcy valuation (me desculpem, mas nem imagino como se traduz isso para português, seria algo como o valor de liquidação em caso de insolvência).
O primeiro método pode ser totalmente ignorado. Somos um clube na modalidade de associação, onde os dirigentes ascendem de um quadro social pagando uma ninharia por mês e sem qualquer responsabilidade sobre a forma temerária que o Fluminense é conduzido. Simplesmente não se aplica.
A ótica do fluxo de caixa descontado é a que faz mais sentido na minha cabeça, mas para clubes de futebol ela encontra algumas limitações de uso.
A primeira é que clubes costumam ter fluxos negativos e acumular perdas na maior parte do tempo. Seu funcionamento normalmente não segue o preceito de maximizar riqueza, mas sim gastar para recuperar o que foi gasto e ter meios de seguir alavancado, até dar com a cara na parede e ter que sofrer ajustes, para novamente voltar a se alavancar em busca de receitas que conjuguem seu sustento e sucesso esportivo.
A dinâmica de fluxos negativos implica em não ter valor positivo no fluxo descontado, ainda mais deduzindo os valores de suas dívidas bilionárias.
O segundo problema diz respeito a pobreza informacional, manipulação de balanço, omissão de passivos, projeções surreais, etc…
E vejam que mesmo nesse aspecto de projeções surreais de tão otimistas, como as que constam no plano de pagamentos do RCE, um fluxo descontado jamais resultaria em 2 bilhões de valor de mercado para o futebol tricolor, mesmo ignorando as dívidas remanescentes e a própria dívida que supostamente será paga (se dinheiro cair do céu).
Sobra o terceiro método, do valor de liquidação.
Essa abordagem é comum na Inglaterra para valorizar transações e determinar valor de mercado. Mais de 50 clubes ingleses entraram nesses regimes de intervenção desde 1992. Sim, a poderosa e mais rica liga do mundo intervém a rodo em clubes insolventes, não existe modelo perfeito. Talvez um dos pilares dessa riqueza sejam esses processos de intervenção, algo inimaginável que possa ocorrer por aqui.
O processo de valorização por liquidação implica em apontar valores de mercado para todos os ativos do clube insolvente.
Quais seriam os problemas em apurar valor positivo no Fluminense, nessa ótica? Vamos olhar para nosso ativo:
Bom, de cara se vê que ele não tem 2 bilhões em ativos. E no cômputo geral, temos um passivo descoberto (passivo total – ativo total) na casa de 271 milhões.
É óbvio que existe muito valor que não é contabilizado, como tem valores registrados que jamais serão realizados pelos valores indicados no balanço.
Caixa e recebíveis seriam consumidos integralmente pelas dívidas correntes.
Nosso intangível é uma aberração contábil e na prática representa despesas incorridas ainda não apropriadas ao resultado (afetam o fluxo de caixa e criam superávits contábeis fictícios, como venho alertando desde as primeiras edições).
Nosso imobilizado também é peculiar.
A sede tem tombamento, restrição de uso e um vizinho problemático, que traz n elementos restritivos para dar nova finalidade ao espaço. Isso tudo implica em valores de mercado muito baixos. Notem que a única movimentação mais recente foi uma ideia estapafúrdia do governador que foi impedido, que ensejava transformar Laranjeiras numa nova sede administrativa, num negócio envolvendo cerca de 300 milhões de reais.
O CT ao lado da Cidade de Deus é uma concessão, não podemos revendê-lo. O mesmo acontece em Xerém, que também é outra concessão. Repassar esses sítios pode até gerar algum tipo de valor, mas nada relevante.
Sobrariam os jogadores e sobretudo a base. Muitos entendem que aqui reside todo valor, mas eu vejo isso tudo, no mínimo, como miopia.
Até os 16 anos não existem contratos, logo, todo esse contingente é livre para partir sem ônus e não gera valor nesse cenário de bankruptcy valuation. E não deveriam gerar muito valor em outros cenários/modos de avaliação, pela falta de vínculo.
Sobram os contratados a partir dos 16 até 40 anos, mas aqui entra outro complicador!
Um clube que não recolhe FGTS, faz pagamentos parciais recorrentes, atrasa férias, 13o salário, imagens, etc., sempre está sujeito a rescisões unilaterais. Além das dívidas que minimizam os valores, ainda há esse risco de perda de vínculos que reduz esse ativo a zero numa abordagem mais conservadora.
Não há meios de atingir 2 bilhões com essa metodologia. Nem centenas de milhões.
Até agora só existem indicativos que a cabeça que vislumbra um valor de 2 bilhões para o futebol do Fluminense precisa de tratamento, nem é mais uma questão de falta de estudo, experiência e estofo para ocupar um cargo de direção.
MODELOS ALTERNATIVOS
Mas os negócios precisam acontecer e o mercado sempre arruma “metodologia” para valorizar negócios. Será que nessa parte extremamente criativa, há como justificar 2 bilhões?
Vou tentar trazer todos que eu conheço, mas podem existir outros, essas pessoas não tem limites em sua criatividade.
MÚLTIPLOS DE RECEITA
Um método cretino onde se atribui valor multiplicando a receita líquida.
É muito usado nesses rankings de valor de mercado de grandes clubes.
Eles multiplicam a receita anual por 1.5 ou 2 e obtem o valor de mercado.
Na melhor das hipóteses, o Fluminense teria que ter uma receita realde 1 bilhão para poder valer 2 bilhões. Digo real em função de permutas e outras apropriações contábeis terem que ser excluídas nesse “robusto método” de valorização.
MÉTODO FORBES
Não deixa de ser outro método de múltiplos, só que carregado em subjetividade, considerando outras transações de clubes com mesmos volumes de receitas e a relação que o clube tem com o estádio onde manda suas partidas.
Nesse caso, o valor a ser atribuído ao Fluminense dificilmente chegaria a 2 bilhões, tanto pela comparação das transações mais recentes, como pela sua receita atual, e pelo no fato de atuarmos como um puxadinho no estádio cuja concessão é do Flamengo.
BROKER VALUATION
Aqui temos uma mistura de uma abordagem contábil, com fundamentos, algumas valorizações a valor de mercado sobre alguns dos registros contábeis. Olham muito para o passado e ajustam valores de acordos com a conjuntura econômica e de mercado do momento. É tudo muito subjetivo no fim do dia. Boa parte do valor reside na habilidade do vendedor saber vender gelo para um esquimó. Cá pra nós, eu não compraria nem um carro usado do presidente do Fluminense.
Se olhar para o nosso passado, principalmente para o fluxo de caixa, não se sustenta 2 bilhões de valor em hipótese alguma. As restrições e problemas que citei acima sobre os ativos se aplicariam.
MODELO MULTIVARIÁVEIS
O mercado inglês desenvolveu uma fórmula para apurar valor de forma simples. Resulta num valor notoriamente arbitrado, cuja finalidade é ter algum parâmetro negocial ou simplesmente gerar conteúdo e trabalhar a imagem de consultorias.
Eis a fórmula e na sequência o resultado se aplicado sobre o Fluminense com base nas últimas demonstrações contábeis:
Nossa receita, mesmo não excluindo a parte fake, não tem como resultar em 2 bilhões de reais nesse modelo.
Receita liquida: 313mi
Ativo: 469mi
Passivo: 741mi
Então a primeira parte da equação resulta em 41mi, mas não temos lucro líquido (déficit de 2mi), o que anula qualquer chance de obter um valor positivo.
Fora o fato que a ocupação do estádio, num caso como o do Fluminense, não quer dizer absolutamente nada. Não lotamos os estádios e perdemos milhões por ano na operação de jogos.
E O MÉTODO MARIOLANDO LERO?
Vamos voltar a esse trecho aqui:
O Fluminense, só nos últimos cinco ou seis anos, só em venda de jogadores, vendeu algo em torno de R$ 650 milhões. A nossa diferença para os outros é que temos uma base formadora muito boa e conseguimos, obviamente, nos manter de pé. O estudo do BTG faz um valuation do Fluminense e a gente acredita que só Xerém vale algo em torno de R$ 1 bilhão.
É muito complicado tentar entender essa mente fervilhante, que pode estar alternando problemas cognitivos com mera retórica de político em pé num caixote em frente aquele McDonald’s na Rua São José, no centro do Rio.
Os múltiplos de receita utilizam UM ÚNICO ANO e não 5 ou 6. Ao usar 5 ou 6 anos, ele infla a valorização em 5 ou 6 vezes.
Eu não vou checar se foram 650 milhões e com muita boa fé considerarei que isso foi obtido em 5 anos e que 100% desse valor eram lastreados em direitos do Fluminense, livres de comissões, repasses e que não perdemos milhões de reais em processos relacionados a essas vendas.
Isso resultaria numa média anual de receita de 130 milhões. A ideia de média me agrada em meio essa estupidez de apurar valor com múltiplos.
Aplicando o maior múltiplo chegaríamos a 260 milhões, um valor equivalente a aproximadamente a ¼ do devaneio dessa entrevista.
Sob a ótica de fluxo de caixa, a base tem fluxos negativos (ajustem o diferimento e vejam a mágica acontecer) e, portanto, não sustenta qualquer hipótese de 1 bilhão.
É preciso lembrar que a base, normalmente, não faz vendas diretas expressivas. Os garotos tem que passar pelo roadshow do profissional para serem alienados e, dessa forma, boa parte do valor está no futebol profissional. Dobrar os valores é uma das confusões típicas que fazem por aí, vide apuração de “ganhos” com receita bruta de sócio futebol na operação deficitária dos jogos.
O mais curioso nisso tudo é que para chegar em 2 bilhões devem ter feito a mesma conta cretina de considerar mais de um ano de receitas do futebol profissional. Uma operação que gera déficits de caixas crescentes e que é uma bela prova que múltiplos são uma vigarice sem fim.
E como é uma #NARRATiVAvsREALiDADE…
“Não se olvide que a liberdade de expressão (de informar, de criticar, etc.) é um dos pilares centrais de uma sociedade democrática. A livre manifestação do pensamento é garantia constitucional, devendo ser assegurada em toda sua plenitude, nos vários veículos de comunicação, inclusive nas redes sociais”, me permitindo uma única alteração: Revue, “no caso concreto”.
No texto original de onde isso foi extraído, ainda há uma nota de rodapé usada:
“A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.” (Art, 220, caput, Constituição da República)‘.
E como sempre é preciso finalizar com mais uma frase do guru Nelson Rodrigues: “O artista tem que ser gênio para alguns e imbecil para outros. Se puder ser imbecil para todos, melhor ainda.”
STs