Desde o final de janeiro passamos a acompanhar a novela do “vazamento” de um documento supostamente sigiloso que trata da oferta da Serengeti a Liga Futebol Forte. Na verdade, “vazamentos” sobre esse acerto começaram a pipocar na mesma mídia em meados de outubro de 2022. Apesar de possuírem todo rascunho do contrato em negociação, somente pequenos e específicos trechos foram liberados, quase que em conta gotas, sempre de forma a fomentar a capacidade de negociação dessa liga, algo que interessa e muito aos seus atravessadores: uma instituição financeira e uma renomada consultoria.
O primeiro “vazamento” parcial
No apagar das luzes de janeiro de 2023, uma matéria bombástica sinalizada em sua manchete que a Liga Futebol Forte teria recebido uma oferta de R$4.85 bilhões em troca de 20% das receitas da futura Liga. No corpo da matéria, um número um pouco mais modesto de R$2.18 bilhões também foi apresentado.
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A proposta apresentada teria dois cenários, que variam de acordo com a quantidade de clubes que façam parte da Liga e que disputem a primeira e a segunda divisão do futebol brasileiro:
Considerando que a Liga Futebol Forte tem 26 clubes, sendo 9 na primeira divisão, 13 na segunda divisão e 4 na série C, atualmente o cenário mais provável é do pagamento de R$2.18 bilhões. Mas deram ênfase no utópico valor de R$4.85 bilhões, sutilmente superior aos R$4.75 bilhões oferecidos a LIBRA pelo Fundo Mubadala, numa daquelas artimanhas de marketing e arroubos de esperteza típicas das pessoas que destruíram o futebol brasileiro nas últimas décadas.
LIBRA X FUTEBOL FORTE
A LIBRA tem 18 clubes de futebol, 11 deles estão momentaneamente na primeira divisão e 7 na série B. A LIBRA alega, baseada em pesquisas, que seus clubes representam cerca de 85% do total de torcedores. Aqui há uma discussão interminável e fútil sobre critérios, amostragem e extrapolação dessas pesquisas, e o pertinente questionamento da falta de correlação desse suposto market share de torcidas com os índices de audiência apurados nas transmissões.
Discussões a parte, é inegável que determinados clubes tem mais apelo comercial que outros.
Aqui reside o elemento mágico dos dois cenários que a Serengeti colocou na mesa da Liga Futebol Forte: 36 ou mais clubes, exigem que pelo menos algum dos de maior apelo, mudem de lado.
Nós desconhecemos detalhes da proposta do Mubadala, mas os valores do adiantamento (chamados de aporte e investimento pelo pessoal que se emociona com dinheiro novo) será dividido por uma quantidade menor de clubes, e com um gap de receita com um teto de 3.5x em vez dos 1.8 da Futebol Forte. Em outras palavras, os times de maior apelo tem muito mais a receber na negociação dos seus 20%, em termos nominais, do que qualquer outra hipótese apresentada pelo Futebol Forte. Para tirar os clubes com maior quinhão da LIBRA, esses clubes precisam abrir mãos de dinheiro no curto prazo, algo para lá de improvável, o que torna a tal artimanha do vazamento do contrato e as manchetes de R$4.8 bilhões risíveis.
É preciso lembrar ainda que o comprador natural dos direitos de transmissão da Liga no Brasil é fã da distribuição de cotas por critérios de tamanho de torcida.
Desdobramentos do “vazamento” seletivo e parcial
Em 6 de fevereiro de 2023, como parte do esforço hercúleo para dar alguma atratividade a Liga Futebol Forte, adicionaram um elemento crucial para avaliação da proposta: os 20% seriam devidos ao longo de cinquenta anos.
Além disso, noticiaram dois dias depois, em mais um trechinho da prévia do contrato supostamente sigiloso, que o gestor de fundos americano estava disposto a desembolar 350 mil reais para os 26 clubes que compõem a Liga Futebol Forte, no intuito de retê-los na Liga e formalizar o acesso do gestor americano aos negócios futuros. R$9.1 milhões de reais num universo, na pior das hipóteses, de 2.18 bilhões, ou seja, cerca de 0.41% do montante.
Notem que 4 clubes que sequer fazem parte das séries A e B seriam contemplados com os mesmos 350 mil reais de adiantamento das parcelas acordadas.
Liga Futebol Forte, Série B e Série C
Tem sido noticiada a intenção da Liga Futebol Forte garantir recursos a clubes da série C, algo que é pertinente quando 4 clubes que fazem parte do grupo estão nessa divisão.
Falam no repasse de 2% do contrato para subsidiar esses clubes numa divisão que praticamente não tem apelo comercial e não consegue gerar receita relevante com direitos de transmissão.
Ainda não “vazaram” detalhes desse contrato supostamente sigiloso que trate dos efeitos econômicos de acesso e rebaixamento entre as 3 divisões, algo que tende a ser bem interessante na medida que os valores de comercialização de direitos entre as 3 divisões tem diferenças abissais.
Entre todos esses vazamentos em conta gotas, também foi noticiado que as ofertas aos direitos da série B de 2023, sem grandes clubes participantes, sofreu redução de 60% dos valores praticados em 2022. Muito se discute sobre teto de diferença entre receitas dos participantes da primeira divisão, mas não “vazam” absolutamente nada sobre como os clubes da 2ª divisão serão remunerados, crítica que também é válida sobre a Libra o que ela permite ser noticiado.
Uma estimativa do tamanho do “bolo” antes das Ligas
Não há informação muito clara sobre o montante total que a Globo paga aos clubes pelos direitos de TV. O relatório da consultoria Convocados, com números até 2021, dizia que os clubes da primeira divisão faturaram cerca de 3.5 bilhões com direitos de transmissão, mas esse número inclui a Copa do Brasil, Libertadores, Sulamericana e até mesmo os mundiais de clubes da FIFA. E todo montante está condicionado a performance esportiva dos clubes.
Em termos de publicidade, o mesmo relatório indica uma receita de cerca de R$1 bilhão em 2021, mas não existe meios de apurar o que seria pertinente a cada competição, e, como em tese, a Liga comercializará somente o Campeonato Brasileiro, cria-se mais um problema na tentativa de estimar receitas dessa empreitada.
Há farta informação na internet afirmando que a TV aberta girava em torno de 600 milhões em 2019 e a fechada 500 milhões. Esses valores sofrem correção monetária a cada ano, até 2023.
Em 2022, existia previsão de pagamento de R$400 milhões para o PPV do Campeonato Brasileiro. Tal valor vem em apresentando queda constante, como reflexo das reduções dos valores da assinatura e das perdas nas bases de assinantes, talvez aqui pela combinação explosiva da crise econômica que se arrasta e agrava desde a pandemia, bem como o crescimento vertiginoso da pirataria.
Com relação a série B, há a famosa notícia da oferta de R$80 milhões para os direitos de 2023, uma redução drástica frente aos R$220 milhões pagos em 2022.
Uma abordagem simplista…
A partir desse ponto precisamos estabelecer premissas.
Vamos supor que em 2024, entre altos e baixos, o negócio da Liga envolva a geração de receita com direitos de transmissão e publicidade, considerando as duas principais divisões do futebol brasileiro, na casa de 2.5 bilhões, de forma bem conservadora.
A abordagem mais apropriada exigiria uma modelagem, com fluxo projetado e tudo mais, mas faltam tantos elementos e seriam necessárias tantas premissas, que não convém no âmbito do que se propõem nessa edição.
A proposta de R$4.85 bilhões implica na totalidade do controle da competição pela Liga Futebol Forte, na medida que teria 36 ou mais dos 40 clubes que disputam as duas divisões. Em outras palavras, estariam pagando, de forma parcelada, R$4.85 bilhões por 50 anos de exploração de 20% das receitas do negócio.
Numa primeira conta grosseira, esquecendo que os valores poderão sofrer aumento ao longo dos anos, temos o pagamento de R$4.85 bilhões que garantirão 20% de R$2.5 bilhões por 50 anos (R$500 milhões x 50 anos = R$25 bilhões).
Efeitos do parcelamento
A proposta “vazada” indica que um primeiro pagamento de 50% (R$2.43 bilhões) ocorreria na assinatura do contrato. Os clubes precisam resolver suas burocracias internas para isso ser formalizado e talvez a primeira parcela seja quitada em algum momento do 2º semestre de 2023.
Há previsão de uma segunda parcela de 25% desse montante (R$1.21 bilhões) doze meses após a primeira parcela. Esse pagamento ocorreria em 2024, ano em que a Liga já estaria operando no sentido de fechar contratos e remunerando o investidor em 20% (estimamos ganhos potenciais de R$500 milhões). Até 40% da segunda parcela poderia seria custeado pela própria receita do negócio, reduzindo o desencaixe pelos direitos.
Isso é muito relevante em vários aspectos, desde a operação financiar os aportes, até mesmo na redução do capital a ser levantado pelo investidor americano, afinal também foi noticiado que o gestor de ativos não tem capital suficiente arcar com os R$4.85bi. Além de pagar bem menos pelo que vai receber ao longo de 50 anos, parte da operação será financiada pela receita da nova Liga.
Após 18 meses do primeiro pagamento há uma terceira e última parcela de 25% (R$1.21 bilhões), que dependendo do timing do fechamento do contrato, pode cair comodamente em 2025, sendo mais uma vez subsidiada pelos 20% dos direitos adquiridos.
A partir de 2026 não teríamos mais aportes do investidor, que usufruiria dos 20% por mais 48-49 anos sem contrapartida. Me parece que ele terá dinheiro de sobra para remunerar seus quotistas. Um belo investimento sob a ótica do investidor. E só do investidor.
E as comissões de intermediação?
É preciso lembrar ainda que os clubes que formam a Liga Futebol Forte precisarão remunerar a instituição financeira e os consultores que a assessoram nesse projeto. Dificilmente isso custará menos de 15% do montante do contrato, quem sabe até 20%. Obviamente, essa parte do contrato supostamente sigiloso, não vazou.
As comissões de intermediação reduzirão os valores a serem distribuídos aos clubes da Liga Futebol Forte (ou até mesmo da Libra, pois por lá também há intermediários).
Nessa ilação de custos entre 15-20%, estamos falando entre R$730 e R$970 milhões de custos de intermediação. Se for 10%? R$485 milhões. Super otimistas e só (R$1.21 bilhões)5%? Algo próximo a R$250 milhões. Apareceram os players que vão faturar horrores em conjunto com investidor da Liga.
Cenas dos próximos capítulos
Em edição futura, tentarei fazer melhores projeções usando os números do Fluminense e criando alguns cenários. Em alguns esboços de fluxo projetado e mesmo criando cenários bem otimistas, o valor presente líquido (VPL) desse projeto sempre acaba negativo. VPL negativos indicam inviabilidade; nesse caso específico, transferência de riqueza para terceiros.
Clubes que pretendam debater esse assunto em seus colegiados deveriam exigir a apresentação de estudos de viabilidade, fluxos projetados e apurar o VPL e TIR. É o básico do básico, mesmo que a imensa maioria dos conselheiros dos clubes e associados não dominem os temas, o simples fato de apurar valores e taxas negativas deveria surtir algum efeito no processo decisório em curso.
Mas isso tudo tende a ser utopia, se trata de dinheiro novo, na casa da centena de milhões em até 18 meses. Mais na frente, quando perceberem a besteira feita e terem consumido todos os recursos sem conquistar títulos nem reduzir passivos, no máximo virará mote de campanha eleitoral e ensejo de um novo plano mirabolante de SAF, resgate público, moratórias, Super Liga, Liga da Liga, enfim, mais do mesmo. O amadorismo vem apresentando contas cada dia mais salgadas.
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