Diligências em clubes de futebol são completamente diferentes de qualquer outra.
Uma diligência normalmente ocorre em dias ou no máximo em semanas. Há prazo apertado e muita cobrança de todos os lados, e o deadline das transações obriga essa correria e, normalmente, os targets tem interesse e governança/controles num nível mínimo ao necessário para que ocorra tudo muito rápido.
Em clubes de futebol isso não acontece. São meses e meses de trabalho muito mais árduo, em busca de informação, tanto interna como externamente. Não existem controles, a contabilidade é atrasada. O rastro se perde ou até não existe de forma proposital.
A motivação é política e não técnica, pois como já mencionei em outra parte desse GUIA, muitas vezes aquele retrato de dívida supostamente total implica na percepção que ela é impagável ou que irá prejudicar e muito a competitividade de um clube se resolverem saneá-la. Querem criar narrativas, desculpas, literalmente tirar da reta. Não há muito interesse em resolver nada.
A solução dos modelos associativos é sempre faturar mais e isso não funciona para imensa maioria dos clubes.
O evento da não realização da diligência no Fluminense mudou minha perspectiva sobre muitas coisas. E essa mudança de perspectiva foi me fazendo enxergar o que um torcedor comum normalmente não enxerga. Efeito colateral da profissão, você passa a diagnosticar os erros, atentar para as narrativas e perceber as meias verdades.
Era uma época de uma boa sequência de diligências realizadas em grandes clubes durante as trocas de gestão. Na mesma época que se negociava o trabalho com a Gestão Peter, se iniciava um projeto em nosso arquirrival, que mesmo incompleto por diversos motivos, criou um ambiente mais propício a sua recuperação, deixando de lado qualquer pretensão de pôr serviços consultivos mais determinantes que o doping financeiro que ocorre por lá.
Talvez eu compartilhe o que aconteceu em alguns clubes em edições futuras, mas isso não é o nosso tema nesse momento.
O projeto não foi para frente, eu não via resultados do tal trabalho interno prometido, tudo isso ao mesmo tempo que ia ganhando cada vez mais conhecimento da indústria através das outras diligências.
E como os problemas no Fluminense foram se empilhando, mesmo com 2 títulos brasileiros em 2010 e 2012, em 2013 ficou insustentável, como torcedor, seguir acreditando em tantas mentiras. O cristal rachou e depois que racha, não tem mais solução; você passa a ver aquilo tudo com olhos extremamente críticos, sabendo que tudo de bom que acontece vai encaminhar uma sequência interminável de coisas ruins que contribuirão para a destruição do Fluminense.
A primeira reeleição do Flu nos custou uma barbaridade em incremento de gastos.
A reboque da implosão do clube dos 13 e dos novos contratos de TV, as despesas subiram loucamente. A liquidez foi para o espaço, asfixia, péssimas decisões e fomos expulsos da Timemania. Caímos em campo, fomos salvos por duas escalações irregulares. Algo bom? Sim. Trouxe sequelas? Com certeza! Várias! Uma delas se elegeu presidente em 2019.
Eu deveria ser o único que se perguntava aquela altura sobre a tal auditoria interna. Ela saiu de cena depois da desculpa esfarrapada e só foi relembrada quando Peter começou a ser entrevistado sobre o legado dos seus 6 anos esculhambando com o Flu.
Então foram anos e anos observando os acontecimentos com olhos investigativos. Já tenho uma década de observação com esse prisma.
Hoje eu sei identificar com exatidão o motivo pelo qual o projeto não foi adiante, por meio de consultoria ou internamente. Vou compartilhar isso com vocês junto com a apresentação do escopo.
Vou seguir a mesma abertura do draft de proposta entregue a gestão.
A diligência começaria por uma revisão de políticas contábeis e acesso a papéis de trabalho da auditoria independente do Fluminense, com 2 tópicos em especial:
- Obter, ler e comentar sobre as demonstrações financeiras do Clube (ou solicitar informações financeiras relevantes) e discuti-las com a Administração para obter entendimento sobre as respectivas práticas e políticas contábeis.
- Revisar os relatórios elaborados por auditores externos para assuntos de controle interno levantados como parte da auditoria para os exercícios de 2008, 2009 e 2010.
Essa etapa seria uma senhora celeuma, pois daria para analisar a qualidade do trabalho realizado, questões de continuidade operacional, a extensão dos exames sobre contingências, entre outros potenciais problemas que observamos ano após ano.
O passo seguinte da diligência seria a análise do resultado no mesmo período, contendo os seguintes tópicos:
- Obtenção, leitura e entendimento das fontes de receitas e despesas do Clube;
- Obter uma abertura das receitas operacionais, analisando:
- Natureza das receitas registradas.
- Leitura da documentação-suporte para as receitas do Clube.
- Confronto entre os contratos firmados pelo Clube, visando à geração de receita/caixa e aos livros oficiais.
- Obter uma abertura das despesas operacionais, analisando: (i) Natureza das despesas registradas; (ii) variações nas despesas, comparadas com períodos anteriores; e (iii) explicações da gerência para as principais variações ocorridas.
- Procedimentos adotados pela gerência para o orçamento das despesas.
- Obter uma abertura das despesas e receitas financeiras, analisando a natureza dos itens registrados.
- Obter uma composição do resultado não operacional, analisando a natureza das transações registradas.
- Indagar sobre a existência de receitas e despesas eventualmente não registradas nos livros oficiais e relatórios gerenciais, obtendo explicação para eventuais diferenças que possam revelar indícios de irregularidades ou informalidades.
Dois pontos precisam ser destacados aqui.
Uma auditoria não chega aos pés do volume de trabalho e detalhes de uma diligência financeira com esse viés investigativo. A diligência não está sujeita a aleatoriedade normativa, muito menos a quantidade de itens para amostra. Se for preciso, revisamos 100% de uma determinada movimentação, algo que jamais aconteceria numa auditoria. Amostras podem ser dirigidas se assim for necessário. É uma diferença conceitual brutal.
Em segundo lugar surgem as palavras mágicas irregularidade e informalidade, as quais qualquer auditor evita e não se esforça para achar no exame anual.
Um exemplo prático daquilo que escrevi ao longo das edições do GUIA e de como é inapropriado ficar pedindo auditoria para investigar algo.
O escopo seguia com procedimentos a serem aplicados ao grupo de caixa e aplicações financeiras:
- Revisão dos controles de caixa e das conciliações bancárias no período, com o objetivo de identificar itens relevantes sem resolução e/ou pendências sem explicação.
- Verificação das aplicações financeiras efetuadas.
- Obtenção com as instituições financeiras listadas nos controles do Clube de extratos recentes para o confronto com os saldos apontados nas conciliações e nos livros.
- Circularização de saldos com todas as instituições com que o Clube manteve transações nos últimos anos, objetivando levantar possíveis contas e especiais e limites de créditos que podem compor o passivo do Clube.
- Revisão dos processos e de prestações de contas via fundos fixos (“caixinhas”).
Revisar esse “caixinha” em clubes de futebol também dá uma dor de cabeça danada. A pertinência do uso desses recursos é sempre altamente questionável. É um momento em que a diligência ganha ares de briga em feira, pois os gastos são efetuados e reembolsados via caixinha pelos funcionários de baixo escalão, mas integralmente aprovados por diretores (amadores ou não) e Vice-Presidentes (amadores).
Essa revisão, num clube com muitas penhoras e bloqueios, costuma mostrar como os credores dão de cara com contas negativadas o tempo inteiro.
Aquilo que muitos entendem como sagacidade ou esperteza de um gestor, pode ser mera burla e/ou triangulação, expondo o clube a contingências ainda maiores, fora os nocivos efeitos sobre sua imagem, afinal burlar penhoras é crime.
Permite também achar indícios de caixa 2. Nenhuma diligência tem alçada e poder para provar a existência de caixa 2. Isso só pode ser feito por autoridades e quebras de sigilo, algo muito além do que nos é permitido fazer.
Esse é um ponto importante a ser destacado. Não há auditoria ou diligência que atenda a esses anseios de torcedores mais raivosos. Quando muito podemos fazer algum procedimento de rastrear ativos ocultos, mas no fim do dia, para conseguir punir de fato um dirigente/gestor, é preciso envolver Ministério Público, Receita Federal, COAF e a principalmente a polícia.
O grupo seguinte seria o do contas a receber:
- Avaliação dos saldos significativos de contas a receber para verificar a capacidade de realização.
- Resumo de outros devedores, destacando assuntos significativos.
Essa parte do escopo, naquela época, era bem simplória.
Hoje em dia, teria que ser revista completamente, pois temos casos de discrepância de valores registrados entre compra e venda, temos uma infinidade de comissões e comissionados numa mesma transação e até mesmo problemas de repasse de direitos econômicos partilhados.
Uma parte que se resolvia em horas, hoje exigiria semanas de trabalho.
E os resultados tenderiam a ser bem interessantes.
A diligência tem continuidade nas contas do ativo imobilizado:
- Comentar sobre o critério de reconhecimento e a base de avaliação dos ativos tangíveis mais significativos.
- Para evitar dúvidas, o escopo de nosso trabalho não inclui a avaliação a valor de mercado de ativos fixos.
O ponto central aqui é identificar despesas que foram classificadas como ativo imobilizado para melhorar o resultado anual dos clubes.
Naquela época ainda tínhamos efeitos de reavaliação de ativos para esconder déficits acumulados e escamotear passivos a descoberto.
Existiam clubes que registravam terrenos de concessão como sendo de sua propriedade nessas avaliações, uma loucura sem fim.
Em 2011 o Fluminense não tinha investimentos lançados em seu balanço e por isso não há qualquer menção a eles no escopo.
O item seguinte era a conta de “atletas”, como se chamava o intangível em alguns clubes, até normatizarem o plano de contas de todos eles:
- Analisar a metodologia de cálculo adotada para o registro de direitos federativos e econômicos de atletas contratados.
- Analisar os controles sobre formação de atletas, reconhecimento de custo, valorização do ativo e registro nos livros oficiais.
- Analisar a baixa desses custos de formação e sua devida contrapartida, de acordo com cada situação (negociação, contratação e/ou profissionalização).
- Verificar a existência de compromissos que envolvam redução no percentual de direitos federativos sobre os atletas.
- Analisar o resultado de negociações recentes que envolvam atletas profissionais.
Essa parte do escopo é uma das mais importantes da diligência. A maioria dos escândalos e denúncias, falando de uma forma geral ao futebol, desde aquela época, se davam em negociações na base e de atletas do profissional.
Os procedimentos aplicados no intangível servem de base para uma infinidade de outros procedimentos e análises.
A partir dessa análise, combinada com outras frentes, podemos ter insights sobre custeio de unidades de negócio (base e cada divisão etária e futebol profissional), além de custos de empréstimos, custos de oportunidade na cessão de direitos de forma gratuita, mensuração do resultado real de uma venda, indicando quais partes envolvidas ganharam mais ou menos dinheiro, ou até a inusitada, mas recorrente situação, da parte que só ganha dinheiro (nunca coloca um centavo na formação dentro do clube e é comissionado até quando o atleta respira).
Releiam os tópicos.
Relembrem das reclamações que originam pedidos de auditoria.
É na diligência que isso é endereçado, dentro dos limites impostos a contabilidade do clube e a sigilos bancárias de terceiros.
Por favor, parem de pedir auditorias!!!
O escopo da diligência chega ao contas a pagar e outros ativos e passivos:
- Análise da natureza e da composição dos principais saldos de contas a pagar, destacando fatores-chave, como beneficiário, flexibilidade de prazos de pagamento, idade dos saldos e limites de crédito.
- Analisar a natureza e a composição de saldos relevantes de outros ativos e passivos, como despesas pagas antecipadamente, impostos a recuperar e adiantamentos, depósitos judiciais, obrigações com fornecedores e funcionários etc.
- Identificar e comentar sobre ativos capitalizados sem perspectivas de realização.
- Buscar identificar outros passivos não registrados ou subavaliados que impactem materialmente as demonstrações financeiras do Clube.
Essa parte objetiva, primordialmente, achar passivos não registrados e ir começando a montar o perfil da dívida de um clube.
Pode ser descobri de tudo nessa etapa.
Partimos então para analisar o endividamento, ou que chamei anteriormente da obsessão pela dívida total:
- Analisar fontes de financiamento (incluindo eventuais financiamentos não registrados no balanço patrimonial, caso identificados), e o perfil de empréstimos em aberto. Considerar a adequação e os controles existentes que demonstrem a destinação dos recursos tomados.
- Descrever os custos de financiamento para o Clube e, por meio de discussões com a Administração e análise dos principais termos de cláusulas dos contratos de empréstimo, identificar restrições significativas impostas por avais, penhoras, hipotecas, garantias e outros acordos.
- Circularização de saldos com todas as instituições financeiras com que o Clube manteve transações nos últimos anos.
- Circularização de saldos com os principais fornecedores e prestadores de serviços do Clube na respectiva data base.
- Pesquisas nos diversos fóruns para entender as ações que tramitam nas diversas esferas judiciais atualmente e seus devidos reflexos nas demonstrações financeiras do Clube.
- Após identificação e composição dos valores devidos reconciliaremos os mesmos com as clausulas contratuais para verificar sua adequação.
Vale ressaltar aqui que a parte sobre contingências é objeto detalhado da revisão fiscal, que será abordada na próxima e última edição do GUIA.
O próximo item é sobre contrato, ou a causa raiz de nenhum trabalho ter sido feito. Na sequencia, trago os procedimentos sugeridos na revisão fiscal e trabalhista.
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