Vamos focar agora na parte que me credencia a falar de finanças de futebol. Se eu for escrever tudo que aconteceu ao longo de décadas em firmas de auditoria e consultoria, eu posso publicar mais de um livro.
A vida é um conjunto de acidentes interligados!
Eu nunca poderia imaginar que após começar minha vida de trainee auditando o Copacabana Palace, disparado o melhor cliente do universo para um auditor independente, ainda mais no início da carreira, eu ia parar, por meses a fio, na sequencia, numa indústria em condições pré-falimentares. É uma escola de vida, você aprende o dia a dia de algo prestes a fechar as portas, os reflexos operacionais, a parte de protestos, manobras de caixa, planos mirabolantes de resgate e reestruturação, entre outras coisas que você jamais tem acesso em organizações sem problemas de continuidade operacional.
Insolvência e clubes de futebol no Brasil andam de mãos dadas. E também não me faltam passagens em indústrias e financeiras em processo de insolvência. Muitas delas com fraudes e irregularidades.
Acho que por não ser originalmente da área contábil, sempre me jogaram para projetos com peculiaridades e que requeriam algum tipo de estudo e especialização. Uma delas, na qual tive muito sucesso profissional, foi a dos Fundos de Pensão. A semente investigativa foi plantada nessa época.
Meu inicio de carreira coincide mais ou menos com aquele tempo onde fundos de investimento ligados ao futebol apareceram no Brasil. Futebol dentro da auditoria é algo bem conturbado. Nessa época foram feitas algumas diligências, adesões a REFIS, e poucas tentativas de se auditar clubes. Nada deu muito certo, a parte dos fundos de investimento todo mundo sabe como acabou. Os demais serviços resultaram em perdas homéricas por calotes.
Mas eu estava no início. 98% dos ex-auditores que vocês vem por aí nunca passaram de sênior (4-5 anos de carreira em auditoria). Alguns nem isso, saíram com 2 ou 3 anos e tiram uma onda absurda. Eles não tem ideia do que é ser auditor de verdade. Aliás nem eu tive experiência completa nisso, pois não cheguei a ocupar os cargos máximos de liderança. Bati na trave.
A complexidade nem se dá na parte técnica, talvez depois de uns 8 anos, fique tudo simples naturalmente. Você tem problemas para resolver, eles dão trabalho, mas você sabe o que fazer.
A complexidade está em conciliar a gestão de um negócio com independência, num universo de múltiplos conflitos de interesses. Isso implica em assumir riscos em função de escolhas mais comerciais que técnicas. Também implica em reuniões pra lá de tensas, internas e externas. Controle de qualidade interno, externo, por pares e de órgãos de controle.
Como eu disse antes, 98% nunca vivenciou isso pelo gargalo natural ou pela estratégia de usar a Firma como trampolim profissional. Eu não levo em consideração essa época. Daí só ficaram 2 ensinamentos para sempre: muito cuidado com os fundos de investimento e projetos em futebol sempre tem calote.
Passaram-se vários anos até que futebol voltasse a pauta das Big4.
Quando a primeira grande oportunidade surgiu, eu já liderava uma prática de investigação no Rio de Janeiro. Após todas aquelas discussões internas, foi decidido que serviços de diligência em clubes de futebol seriam conduzidos pela prática que eu fazia parte. Ainda que se envolvessem outras práticas, a liderança seria dos investigadores.
Assim, ocorreram três trabalhos de diligências de natureza investigativa em clubes que tem acumulado 19 títulos brasileiros (1987 é do Sport). Projetos focados em descobrir o tamanho dos problemas herdados de gestões anteriores.
Um divisor de águas nesse tipo de mercado. Algo que começou e acabou com o início de trabalhos puramente de consultoria a partir de 2016-17, sem qualquer viés de diligências ou investigações, exceto um trabalho recente da Kroll em um clube de Minas Gerais. Mas a Kroll não é uma Big 4.
As caças as bruxas não interessam aos modelos associativos de uma forma geral, pois atrapalham e muito a formação de alianças futuras. Normalmente, gestores amadores são ávidos para descobrir o tamanho de suas dívidas e apontar culpados, mas quando são apresentados os valores, se apavoram com a realidade e usam dos mesmos artifícios daqueles que estavam sob investigação para ocultar o valor de seus passivos.
Gerenciei diligências e investigações sobre gestores emblemáticos do futebol brasileiro: Eurico Miranda no Vasco, Marcelo Teixeira no Santos e o conjunto da obra herdado pela Patrícia Amorim no Flamengo.
O mito da auditoria, em que cada 11 em 10 torcedores ativistas não param de falar, foi criado pela criatura que vos fala.
Agora isso é confundido o tempo todo com meras consultorias. Percebo que a maioria das pessoas que pedem uma auditoria nem imaginam o que ela faça, muito menos saibam distinguir os diferentes tipos de projetos que existem e o que deve ser adotado em que momento.
Eu nunca quis cartaz sobre isso. Todo gestor amador de clube, e principalmente os falsos profissionais da bola, tem seus pelegos e eles agem de forma covarde. Se já era complicado lidar com essas coisas no dia a dia dentro dos clubes, imagina potencializar isso se tornando famoso perante toda torcida. Então sempre me xingaram só por tabela.
Mas eu nunca mais farei esse tipo de projeto.
Primeiro porque estou fora das Big4 e de outras firmas de renome em consultoria. O mantra do torcedor ativista é por Big4, quando na verdade a maioria dos clubes precisa mesmo é de investigações.
Segundo porque realmente cansei de ver os projetos não resultarem em nada. Todo efeito positivo é para lá de efêmero. Na maioria dos casos, os dirigentes sob investigação voltaram ao poder anos depois, mesmo com uma centena de páginas em relatórios que mostravam que isso era um absurdo completo.
E terceiro porque ser calotado cansa. Em posições de liderança isso penaliza sua bonificação a atrapalha sua carreira. Ajustes de perdas de centenas de milhares de reais simplesmente não pagos. Horas incorridas não remuneradas, overrun ignorados, pedidos além do escopo que acham que você precisa fazer por amor e caridade.
Hoje só há uma função que me atraí em clubes, mas ela é cada dia mais utópica. E tem prazo definido.
Em qualquer clube que você não tenha vínculo afetivo, os problemas, desvios, dívidas explosivas, etc… são indiferentes. Se é um rival, chega a ser até divertido. Você volta para casa tarde da noite meio que feliz que o seu adversário está em apuros. Não pensem que há profissionalismo nesse nível, futebol no Brasil é algo extremamente passional. As pessoas precisam manter a postura e coisa e tal, mas em off, sempre rolam aquelas brincadeiras e certa satisfação em ver o adversário com problemas.
Pelo menos até a conversa derivar para o clássico estalo, depois da segunda grande diligência: Opa! Estou encontrando os mesmos problemas que da primeira vez! Será que isso acontece no time que eu escolhi para torcer?
Bom, aí vem a fúria…
Na continuação vou tratar exclusivamente sobre as duas ocasiões onde eu tive contato profissional com o Fluminense. Até lá!