Eu tenho uma infinidade de restrições para tomar as demonstrações financeiras auditadas do Fluminense como corretas e confiáveis. Aliás, da maioria dos clubes e de boa parte das empresas listadas em Bolsa.
Essa é a primeira edição sobre análises dos balanços e tratará exclusivamente desse tema. Pretendo desenvolver melhor minhas considerações iniciais em edições futuras, mas cada assunto é tão longo que isso exigirá várias publicações.
Via de regra, toda análise de balanço que vocês acham na mídia ou publicadas por grandes instituições e consultorias, partem da premissa que os balanços são fidedignos e podem ser usados sem maiores restrições para desenvolver análises, montar rankings comparativos, etc..
Fazem isso em primeiro lugar por comodidade. Para você colocar um balanço em dúvida, precisa de muito mais tempo e análise que a mera tabulação e cálculo de índices que são usados por aí. Esses rankings que tem um apelo de mídia absurdo perdem o sentido de existir. Como tudo não passa de uma grande jogada de marketing, para que criar problemas?
Em segundo, para evitar a cultura do processinho, que só prospera em função da limitação técnica que a maioria dos jornalistas e suas fontes tem para tratar desses assuntos contábeis, de normas de auditoria e até mesmo das ameaças judiciais em si.
Não há absolutamente nada que nos impeça de achar que algo esteja errado, mal explicado, divergente do cenário esperado, antagônico com notícias e processos que podem ser consultados ou que são veiculados pela imprensa. O contencioso dos clubes é de uma riqueza informacional ímpar. E você pode formalizar suas impressões e desconfortos na medida que as fundamenta com análises, informações públicas e sobretudo normas contábeis e de auditoria. Pode tecer questionamentos e sugerir ações. É tudo perfeitamente lícito e legítimo sob vários aspectos.
Quando você alia a liberdade de expressão com o embasamento técnico, não tem porque temer processinhos. Agora, se você fica por aí de bravatas, faz análises rasas e não entende do riscado e ainda sim insiste em sair jogando pedra, você merece mesmo ser processado. Pessoas que endossam balanços notoriamente furados também deveriam ser processadas, mas aí pura utopia da minha parte.
Ao longo da minha carreira poucos projetos resultaram em litígios. Muito poucos mesmo. Em nenhum deles fomos penalizados. Do ponto de vista pessoal, só tenho um único processo movido (eu era o autor) e tive êxito em todas as instâncias até a outra parte meter a viola no saco e sair de cena.
É óbvio que tecer comentários a distância e somente com base em informações públicas nos trazem limitações. Um desafio a mais tanto na análise como na hora de escrever suas colocações e pontos de vista. Existem situações onde você pode ser taxativo em apontar o erro, como outras precisa ficar resignado a levantar a red flag e seguir adiante.
Existem muitos saldos que decorrem de julgamento profissional e opinião de especialistas. Não somos obrigados a acatar isso. Embora um clube tenha conforto e aja dentro das normas ao apurar saldos com base em opiniões de especialistas que ele mesmo contrata, nós podemos e devemos questionar esses julgamentos, até mesmo para se esclareçam as bases, premissas e prognósticos para um decisão de provisionamento ou não. É preciso forçar uma transparência numa área extremamente opaca.
Como por exemplo em situações onde é possível desenvolver uma análise história de erros de julgamento ou falta de integridade no reconhecimento de saldos devedores, fruto de notórios equívocos. Ações que estão tecnicamente perdidas e seguem sendo consideradas como de perda possível (não requer provisão, por norma) através de manobras jurídicas puramente protelatórias, associadas a uma opinião externa complacente com a intenção de não provisionar perdas eminentes e acentuar déficits anuais.
Julgamentos também afetam normas e procedimentos, e é justamente a partir desse ponto que começo a elencar porque entendo ser complicado acreditar cegamente nos balanços do Fluminense.
Continuidade Operacional
O Fluminense tem apontamento de ressalva quanto a sua continuidade operacional, de forma velada, desde 2013, como podemos ver no parecer sobre as demonstrações emitido em 12/03/14:
E de forma explícita a partir de 2015:
Desde então essa situação só deteriora; a necessidade de capital de giro não para de crescer, a reboque observamos o crescimento vertiginoso do endividamento total e todo santo ano temos que ler que a “administração está envidando esforços com o objetivo de minimizar os impactos em seu fluxo de caixa”. Medidas corretivas são descritas, via de regra, na nota 1 e de uns tempos para cá fazem parte daqueles textos de marketing que encaminham as demonstrações para o seu público-alvo. O auditor insiste em acreditar que essas medidas resolverão o problema de continuidade, mesmo no ano seguinte observando que elas foram infrutíferas e/ou agravaram a situação de pré-insolvência.
Quando a continuidade está em risco, existem normas e procedimentos a serem adotados, provisões a serem constituídas e notas explicativas tratando desse assunto com mais profundidade. Eu não tenho a boa vontade dos auditores externos do Fluminense com relação ao futuro e as ações supostamente corretivas. A análise do balanço mostrará em que me fundamento para divergir dessa opinião e crença em um futuro melhor.
Receitas
Sempre tive uma dificuldade enorme em amarrar as receitas informadas pelo Fluminense em seus balanços anuais.
Primeiro surgiram dúvidas sobre valores de receitas de vendas de atletas, pois essas partilhas diretas e indiretas de direitos podem implicar em uma série de questionamentos sobre o correto valor a ser registrado como receita.
Quando falo de partilha indireta, me refiro ao famoso sell on fee, sempre lastreado em um contrato de exclusividade, que na prática não deixa de ser partilha de direito econômico com terceiros de forma camuflada. As pessoas reclamam demais desse tipo de afirmativa, mas não adianta tampar o sol com a peneira. Desde que a FIFA baixou normais mais rígidas com relação a Third Party Owners(TPO), passamos a observar esse mecanismo de comissões como medida paliativa.A FIFA pode conviver com isso, mas no que tange a registro contábil, isso me faz ter trocentas dúvidas e todas elas relacionadas a inflar a receita operacional líquida.
Argumentam que as comissões são provisionadas e o efeito líquido é zero. Eu concordo em parte com isso, pois há um componente de relação sobre receita e déficits apurados na lei do Profut, no capítulo de gestão temerária. Mais receita, menos problemas. E no nosso caso, essas comissões não são pagas, viram processos, contingências que nem sabemos ao certo se estão provisionadas a contento (vide próximo tópico).
Outro ponto bastante nebuloso são as receitas de patrocínio, uma vez que o Fluminense tem a mania de dizer que todos os contratos são sigilosos.
Além de não termos como amarrar os números, temos as questões das permutas, onde não fazemos ideia dos critérios utilizados para arbitrar receita, ou até mesmo se essa sistemática contábil adotada está correta.
Também faltam muitos elementos para amarrarmos a receita do programa de sócio futebol e de associações do clube de uma forma geral. Não abrem as comissões sobre os programas e segundo as notas, há uma operação de crédito lastreada em receita de associados, com um custo elevado.
A questão da discussão dos prejuízos operacionais com os jogos é mais uma caixa preta, mas essa só vou me aprofundar mais na frente.
Enfim, tudo é super “transparente”.
Contingências e Provisões
Contencioso de clubes de futebol são um dos piores pesadelos, tanto para gestores (pelo menos os sérios) como para auditores.
É muito complicado acreditar cegamente nos valores registrados e vou explicar os motivos que me levam sempre a desconfiar disso tudo:
- É muito comum vermos lançamentos de ajustes de exercícios anteriores sobre passivos não contabilizados. O parecer sai limpo no que tange a ressalvas sobre passivos omitidos ou contingências não provisionadas e um ou dois anos depois, descobrem que os números não eram íntegros e faltava reconhecer dívidas;
- Há um componente de julgamento profissional exacerbado na constituição de provisões para contingências. Se os especialistas externos (aka advogados) entenderem que determinado processo é de perda possível ou remota, ele não é provisionado. Bem, existem uns processos não provisionados que são difíceis de engolir que a perda não é provável e não deva ser contabilizada, alguns na casa da dezena de milhões de Reais. Julgamentos podem ser conflitantes, logo me reservo o direito a desconfiar que há excesso de otimismo e isso impacta e muito qualquer análise financeira, na medida que um passivo pode aumentar uns 50 milhões dependendo de uma única causa.
- Apesar da elevada movimentação no contencioso do Fluminense, raramente você enxerga nos trimestrais alguma flutuação. Quando ocorre, e isso desafia o noticiário na imensa maioria das vezes, pois vemos explodir processos milionários toda semana e notamos reversão de provisões. Isso gera receita, que por sua vez gera superávit ou redução de deficit. É muito complicado engolir isso tudo na base da boa vontade com a gestão. Muito mesmo.
Existem outros fatores que fazem ter dúvidas e vocês serão apresentados a todos eles nas próximas edições.
Espero que a essa altura você já esteja se questionando para que perder tempo analisando algo que possa estar errado. Bem, é que nós temos a mão, de uma forma ou de outra é algum tipo de referência e na medida que você consegue validar saldos com outras fontes, dá pra montar um diagnóstico bem mais preciso que qualquer narrativa de gestor. É o caminho para não ser facilmente enganado pelo canto da sereia.
#DARKSiDEFLUCONOMiCS
Em função da minha abordagem bastante peculiar nesse tema, decidi adotar uma hashtag padrão para toda edição e postagem do twitter que envolvam balanços e as finanças do Fluminense: #DARKSiDE.
São múltiplas influências nessa escolha de hashtag. A primeira e mais relevante é do mestre Damodaram e seu livro The Dark Side of Valuation, de 2001. Uma época em que eu estava envolvido em diversos projetos que exigiam revisar modelagens em investimentos altamente questionáveis em fundos de pensão ligados a coisa pública, e o livro me ajudou horrores. O uso do termo darksideacabou generalizado em outras obras de outros autores. Na literatura sobre fraudes corporativas e corrupção, darkside é um termo relativamente usual, então você acaba incorporando.
Mas não vou negar, e isso é bem óbvio para quem estiver acompanhando as postagens no Twitter, que também tem o lado Star Wars nisso tudo.
“You don’t know the power of Darkside”.
A emblemática frase tem múltiplas interpretações. Vai muito além da forma binária de pensar. Enfim, para facilitar a localização de conteúdo e criar uma referência, vamos de #DARKSiDEFLUCONOMiCS.