Essa edição faz parte de uma pequena thread sobre O PLANO DE PAGAMENTO DE CREDORES do Fluminense.
Depois de meses de espera, o material referente ao Plano de Pagamento de Credores, através do regime centralizado, previsto na Lei dos Clubes Empresa, já não é mais exclusividade de um único jornalista.
Finalmente tivemos acesso ao material em juízo e ele chegou as nossas mãos após a disponibilização da proposta de orçamento para 2022, o que permitirá algumas análises bem interessantes.
Existem 3 documentos principais:
- A apresentação do plano;
- A inicial que encaminha o plano a Justiça; e
- O plano em si
Documentos disponíveis sobre o Plano de de Pagamento do Fluminense
As edições sobre esse tema procurarão trazer análises desse plano, o confrontando com a peça orçamentária vigente, entre outras considerações e pontos de atenção que eu julgue pertinentes. O ideal seria fazer isso tudo com os números de 2021 auditados, mas para variar, a gestão vai esperar até o último dia do prazo legal para disponibilizar o balanço 2021.
Tudo isso será feito com a abordagem #DARKSiDE:
Incertezas na adesão
Antes de entrar nos números em si, precisamos rediscutir rapidamente os argumentos usados por uma associação sem fins lucrativos para aderir a um programa previsto numa lei de clubes empresas.
Os advogados do Fluminense e, portanto, sua gestão, fazem a seguinte interpretação:
Há uma discussão infinita sobre a pertinência da adesão de associações sem fins lucrativos , afinal o regime centralizado é algo criado na lei que institui o clube empresa e trata dos clubes, dando essa possibilidade de adesão, num contexto de transformação em SAF.
Mas a lei foi muito mal escrita e de fato não apresenta vedação a adesão de quem não é SAF nem iniciou o processo para criar uma SAF, inclusive, o artigo seguinte deixa ainda mais claro que qualquer um pode ter direito ao regime centralizado:
Na medida que vários clubes de futebol “não SAF” tem obtido o mesmo direito na Justiça, mitiga-se se alguma maneira os riscos na adesão a esse mecanismo. Mas as incertezas existem.
O timing desse tipo de discussão jurídica sobre a pertinência da adesão ao regime centralizado é muito mais longo que o risco de crédito nessa história, como veremos mais na frente. Uma coisa poderá levar a outra, mas hoje, só tendo uma bola de cristal para descobrir o desfecho desse potencial imbróglio.
A delicada situação financeira do FFC
Para quem tem o mau hábito de acompanhar coletivas do gestor, alternamos vários momentos onde se vende a ideia de que tudo está indo as mil maravilhas, pagando mais folhas que meses, pagando centenas de milhões de dívidas por ano, o que resultaria num Fluminense saneado em 9 anos, 6 anos, ou qualquer número aleatório de anos que surja na mente iluminada de nosso presidente; ou momentos pontuais onde estamos muito mal, passando por um doloroso processo de saneamento, com atrasos salariais, falta de recolhimento de FGTS e que isso tudo exige sacrifícios e vendas de jovens atletas.
O que os documentos apresentados falam sobre a nossa situação financeira?
A gestão apresentou um total de execuções cíveis e trabalhistas em janeiro de 2022, num montante de cerca de R$82.7 milhões. Esses são valores onde não cabem mais recursos e ações protelatórias. São penhoras e bloqueios imediatos, que não tem sucesso na execução dada a extrema habilidade do Fluminense em manter suas contas bancárias negativadas, como se observa na leitura das movimentações processuais dessas execuções. A imensa maioria desses processos não conta (ou não contou por vários anos) com sigilo e são (eram) informações públicas.
A gestão então tenta explicar como chegou a esse ponto de ter o equivalente a mais de 23% de sua receita liquida projetada com muito otimismo para 2022, comprometida com bloqueios e penhoras já consolidados.
Isso foi feito em 5 blocos de “explicações”.
No primeiro culpa-se o passado, falando em déficits de caixa acumulados:
Esse conceito “anteriores à presente” é no mínimo curioso.
Nós já tratamos disso na edição 9, de 04/07/21:
Fluminense apurou um deficit de caixa de R$42.5 milhões em 2020. Essa informação está disponível na demonstração do fluxos de caixa, onde o deficit contábil é ajustado pelos efeitos de itens não monetários. Para fins de comparação, no ano anterior, o deficit de caixa apurado foi de R$27.9 milhões.
Nós ainda não temos os números de 2021, afinal, a diligente e transparente gestão atual ainda não publicou suas demonstrações financeiras, apesar de vários outros clubes já terem feito isso.
2020 foi um ano integralmente gerido pela atual gestão.
2019 foi um ano compartilhado com a antiga gestão.
Mas vamos aos números auditados:
Se formos pegar a demonstração de fluxo de caixa de 2018 e 2017, existem SUPERÁVITS de caixa reportados e auditados, de 70 e 20 milhões, respectivamente.
A dinâmica desse fluxo de caixa exige edições inteiramente dedicadas a ela, mas não é só serviço da dívida que inviabiliza o Fluminense e consome os excedentes operacionais, quando eles são gerados.
Indo um pouco mais pro passado, chegamos na “herança” da gestão Peter. É preciso lembrar que até o início de 2016, o atual presidente, que foi figura relevante em todas as últimas três gestões do clube, exerceu uma infinidade de cargos chaves que impactaram nas finanças do clube, chegando a acumular serviços profissionais no jurídico com a vice presidência de futebol. Tentar desassociar-se do que herdou da gestão Peter em termos de problemas financeiros e contingências formadas não me parece muito honesto.
A narrativa da “herança maldita” é um expediente recorrente usando em modelos associativos para mascarar incompetência e gestão temerária. E um contra-senso por natureza, afinal ninguém é obrigado a se candidatar a presidente de clube (cargo não remunerado), sabendo que terá que lidar com um quadro de pré-insolvência. Se opta por concorrer e se elege, sabe que terá que lidar com isso, de forma abnegada, pois se propôs a resolver esses problemas e não passar um triênio ou dois se lamentado do que herdou. Voltando a questões de honestidade, era preciso dizer que teria que vender joias para quitar dívidas em vez de ter criticado vendas enquanto fazia oposição e lançava promessas de campanha que saberia que não poderia cumprir.
Por longos 5 anos, o parecer do auditor independente, trazia no seu parágrafo de ênfase sobre os riscos de continuidade das operações, a quantificação da necessidade de capital de giro:
Notem como aquela gestão que também se dizia austera e que estaria saneando o Fluminense, foi agravando gradativamente o nosso rombo de caixa acumulado. Formação de rombo que é confirmada no próprio plano, com algumas omissões e meias verdades para “montar o case” de sempre culpar os outros.
É preciso ressaltar ainda que os números apurados para 2015 e 2016 estão subavaliados, afinal as contas desses anos sofreram ajustes em 2017, principalmente com relação a passivos omitidos. Como elas não foram republicadas, não se apurou o efeito desses ajustes na necessidade de capital de giro apontada nos parágrafos de ênfase.
A partir de 2017 a necessidade de capital de giro passou a ser omitida no parecer do auditor independente. embora o parágrafo de ênfase sobre dúvidas acerca da continuidade operacional do Fluminense apareça nos pareceres de 2017, 2018, 2019 e 2020.
Eu sempre fico muito comovido com esses “esforços conjuntos em prol da transparência”. Existem formas de estimar essa necessidade de capital de giro a partir das demonstrações financeiras, mas como elas não são citadas oficialmente nas publicações auditadas, deixarei para imaginação dos leitores o motivo pelo qual a informação desapareceu, principalmente depois dos déficits de caixas colossais mais recentes.
No item seguinte, argumenta-se que o clube não tem mais acesso a linhas de crédito:
As linhas de crédito inexistem em função da deteriorada situação financeira, num estágio de pré-insolvência, que muitas pessoas se recusam a admitir que existe. Como alguém vai emprestar recursos a uma instituição que apresenta volumosos déficits de caixa recentes, elevado endividamento e tem fama de caloteira?
Se toda essa narrativa de reconstrução e austeridade tivesse algum lastro, teríamos acesso a linhas de crédito. E aqui é preciso ressaltar que operações de antecipação de parcelas de vendas de jogadores não deixam de ser empréstimos, ou seja, crédito tem, mas falta lastro.
No item seguinte reclamam das penhoras. alegando que elas engessam e fragilizam as atividades do Clube.
Aqui, entendo que preciso trazer outra captura, de um trecho anterior a esses cinco blocos de “explicações”:
Trecho retirado do Plano FFC entregue a Justiça, datado de 21/01/22
Nossos “indispensáveis parceiros” nos engessam e fragilizam, segundo os relatos desses documentos:
No momento oportuno, voltarei nesse caso de parcerias, execuções e penhoras. Por enquanto fica só a curiosa relação de amor e ódio com nossos parceiros e as contradições na leitura mais atenciosa dos documentos.
Existem ainda mais 2 blocos de explicações sobre situações mais recentes, referentes a 2019/2022.
O primeiro trata de condenações em processos FIFA e TAS/CAS:
Esse item (d) sempre me leva a questionar aquele batido discurso de pagar centenas de milhões de dívidas que ouvimos desde o final de 2019. Pelo jeito, não priorizaram o pagamento de dívidas que poderiam causar as punições supracitadas na captura do texto. Muita sagacidade, partindo do pressuposto que realmente pagaram centenas de milhões em dívidas, algo que não se consegue enxergar nas demonstrações financeiras, principalmente na do fluxo de caixa.
O ultimo item trata dos efeitos da pandemia.
Aqui tem um caso bem difícil de “engolir”, onde alegam que perdemos 27% da nossa receita líquida em função dos estádios fechados, não realização de vendas e repactuação dos direitos de transmissão:
Planos de pagamento exigem uma abordagem de caixa, afinal, fluxos livres positivos é que financiarão o pagamento de dívidas, e não efeitos de corte na contabilização ou outras artimanhas contábeis.
A redução de 19% é contábil, pois como o campeonato sofreu adiamento, as últimas parcelas foram pagas no exercício seguinte (2021). Em termos de impacto no fluxo de caixa, há o custo de financiamento desse atraso, mas ele não impacta em 19% das receitas do ano anterior.
Redução em vendas de atletas? São receitas extraordinárias. É aquela popular frase de contar com o ovo no c… da galinha. E essas vendas são parceladas, os efeitos numa análise de comparação de receitas apuradas na contabilidade é diametralmente oposto as do fluxo de caixa, com parcelamentos que levam anos.
Por último, a falácia de perdas de receitas com jogos.
Vamos recordar uma thread recente:
Receita líquida dos jogos não representa o resultado operacional das partidas. É preciso, em termos de fluxo de caixa, trabalhar com o resultado líquido dessas partidas e não com a receita de bilheteria em si, principalmente em clubes que operam seus jogos de forma recorrentemente deficitária. Portões fechados representam perdas de caixa menores nesses casos.
Vamos aos números!
Receita líquida dos jogos
Compilando os quadros para comparação:
Como podemos ver, não se pode argumentar simplesmente usando uma redução de 80% num cenário onde se perde dinheiro na operação dos jogos.
Se a receita de bilheteria sofreu uma redução de 80%, a despesa caiu 44%. Na prática, perdemos 136% (um pouco mais que o dobro) nos jogos de 2020 comparados aos de 2019, mas estamos falando de algo que gera perdas, fluxo negativo e que não paga dívidas, mas ajuda a formá-las, ou na melhor das hipóteses, consome parte da receita do programa de sócio futebol.
Segue o jogo…
Essa edição pode parecer política, principalmente na mente dos aficcionados no modelo associativo que tem ideia fixa em montar chapas e fazer partes de grupos políticos de clubes.
Mas na prática, a qualidade do diagnóstico sobre os motivos que nos levaram a ter dívidas impagáveis a ponto de termos que fazer uso de uma moratória em cerca de um 1/3 de nossa dívida total, reflete na elaboração do plano em si, e sobretudo nas expectativas de sua execução.
Há a análise sobre os números e há a análise sobre gestão, a segunda naturalmente subjetiva, onde precisamos buscar elementos para tentar construir algum tipo de credibilidade sobre quem está preparando e executará o saneamento parcial proposto. Como diriam em Portugal, o item II foi “chumbado”.
Nas próximas edições…
O plano parte para o item III, que traz auto-elogios a atual gestão, tentando dar alguma credibilidade ao plano proposto.
Na sequência temos um fluxo de caixa projetado até o primeiro trimestre de 2025. Isso mesmo, o fluxo de caixa que desapareceu das peças orçamentárias da atual gestão, reaparece no plano de pagamentos, de uma forma incrivelmente reduzida. Conciliarei isso tudo.
O item V trata dos 268 credores a serem contemplados nesse plano de pagamento de um pouco mais de 217 milhões.
O item VI trata da viabilidade do plano e sua eficácia e no item VII temos considerações finais.
Serão várias edições e uma delas (relativas a conciliação do do fluxo de caixa do plano com o orçamento de 2022) restrita a membros da newsletter.