Nessa parte vou abordar a analogia que Ferran Soriano faz com a indústria da bola e um circo. Não tem como não lembrar do início do caminho, a partir de 1986, para os nossos sombrios anos da década de 90, que a meu ver se avizinham novamente. O circo é mera referência. O problema é muito maior que isso.
Chegamos na parte do livro onde é discutido a evolução da indústria da bola, o patamar abaixo do ideal em que o Barcelona se encontrava, ficando para trás de clubes da liga inglesa e até mesmo do seu arquirrival espanhol.
Para contextualizar a dinâmica do modelo de negócio do futebol, Soriano o compara, até o início da década de 90, a um circo. A explicação reside em que o negócio era restrito a partida, as pessoas compareciam, assistiam, consumiam durante o espetáculo e iam embora. Criava-se um hiato entre os jogos que simplesmente não era explorado e muito menos rentabilizado.
O ponto de inflexão da mudança do modelo de circo acontece com o surgimento das TVs a cabo e quebra de monopólios. Cotas de TV impulsionam a indústria, que passa a arrecadar muito mais e a crescer numa taxa bastante superior a qualquer negócio daquela época.
A reboque vem o desenvolvimento do marketing dos clubes, ampliando os ganhos e explorando todas as oportunidades possíveis e imagináveis. Também trata da questão de estádios como um dos pilares de geração de receita, de forma direta ou indireta.
Qual a lógica por trás disso tudo? Mais recursos para montar times cada vez mais fortes, que conjugado a gestões financeiramente planejadas e superavitárias no longo prazo, tenderiam a ter sucesso de forma recorrente, dando lastro ao seu franco crescimento e consolidando os melhores como marcas globais de entretenimento.
Há muita discussão sobre formas de dividir cotas de TV e vamos focar na ideia central: você precisa receber o mesmo que os demais times que você pretende competir e se igualar como marca global. Guardada as proporções, de acordo com os anseios de cada clube, é preciso ter em mente que gaps de receita implicaram em menor competitividade.
Chegou a hora de tratar do enésimo abismo entre o que a gestão atual do Fluminense pratica e o que o livro prega.
Desde a concepção do Clube dos 13 que o Fluminense permitiu ser enquadrado em uma zona inferior da distribuição de cotas. Mas o futebol ainda era bem mais barato, tínhamos patrocinador abnegado, fornecedor de material que pagava para nos vestir, e aquela bomba-relógio do gap de receita acabou camuflada. Seus efeitos só foram aparecer no longo prazo. Com a implosão do Clube dos 13, o gap aumentou ainda mais, tudo com a benevolência das gestões do modelo associativo. Estava entrando mais dinheiro e pouco se importaram que tinham times ganhando dezenas de milhões a mais todo santo ano.
Para nosso “azar”, para quem se fia no acaso, perdemos o patrocinador e o fornecedor, aqueles mesmos que o modelo associativos e o conselho diretor já faziam uma força enorme para enxotar do Fluminense. Não é à toa que entramos em um longo jejum de conquistas, brigamos para não cair e agora vivemos a vibe de comemorar o meio da tabela e classificações para a Libertadores. Hoje há consenso que é impossível brigar com nosso rival no Rio de Janeiro, alguns se apegam mística de camisa, ao imponderável e a vários complexos, mas a luz da razão, não há mais como competir.
Vamos trabalhar em cima desse tripé: estádio, receita de TV e marketing.
O que eu esperaria de alguém que leu o livro e se orienta nele para transformar o Fluminense?
Com relação a estádio, a primeira atitude seria deixa de ser um puxadinho quase informal da arena que o Flamengo é concessionário. O Fluminense deu lastro para essa concessão na medida que o Governo do Estado inventou uma regra que “proibia” um único clube assumir o Maracanã, e o que vimos na prática foi o time da Gávea fazer milhões em receita antes da pandemia e nós termos que dividir os custos e amargar prejuízos na casa dos milhões de Reais todo ano.
No pós-pandemia isso ainda ficou bem pior para alguém que supostamente leu o livro e concorda com ele. Jogar num estádio com esses custos elevadíssimos e vazio, ainda que eu esteja perdendo menos dinheiro que perdia com ele aberto, não faz o menor sentido econômico. E a atual gestão já poderia ter pulado fora desse elefante branco, mas não, andam sinalizando que querem manter a parceria no consórcio.
A desculpa dada é que o Maracanã serve de lastro para impulsionar o programa de sócio futebol. Mas vejam como é a vida, na pandemia o público foi proibido e o sócio futebol praticamente se manteve em dia em suas contribuições. As quedas em associação, segundo dados do Portal da Transparência e os trimestrais publicados, ocorreram entre os sócios da sede (tanto os restritos a lazer/social, como principalmente os olímpicos). Ao que parece, o drive de associação é mais ligado a fatores emotivos e abnegação do que acesso aos jogos com ingressos subsidiados e preferência de compra.
Perder dinheiro na operação dos jogos sem realizar um estudo de mercado das motivações para associação e sobretudo sobre aqueles que se mantiveram adimplentes durante a pandemia é mais um elemento que mostra que o perfil do diretor de corporação de multinacional passa bem longe do atual Fluminense. Sinaliza que tudo gira na base do achismo e na forma bastante peculiar de como o mandatário enxerga a indústria.
Sobre cotas de TV, depois do fiasco da empreitada do carioca, é óbvio e ululante que (i) a gestão do Fluminense é extremamente amadora; (ii) completamente suscetível ao canto da sereia; (iii) deixou o Flamengo implodir as cotas do Estadual e ampliar ainda mais o gap de receita, na medida que o time da Gávea consegue gerar milhões por ter uma base de torcedores muito maior que a nossa. Mesmo dando errado, o Flamengo ganha bem mais que o Fluminense.
Tenho receio que novas rodadas de negociações ou mudanças de modelo sobre as cotas resultem em perdas comparativas ainda maiores.
No mais, com o abismo atual, e lendo o livro e aceitando aquilo tudo que está escrito, não há como dizer que enxerga chance de títulos contra o rival. Simples assim. A não ser é claro, que conte com o acaso, ou seja, o livro não está servindo para guiar p nenhuma!
Sobre marketing serei conciso. Anos e anos sem máster, dezenas de permutas. Receitas anuais pífias, bem aquém dos demais times da primeira divisão. Farta distribuição de camisas, contrato de fornecedor que não tem valor fixo de receita e não enxergamos incrementos significativos nem nos booms de lançamento de novos uniformes.
Não faço ideia se o atual patrocinador honrara o contrato, afinal, além do histórico do Fluminense ser péssimo, essas empresas de apostas não estão reguladas no Brasil. Na Europa há movimento para expulsá-las de relações com clubes de futebol. Além de terem preocupações sobre origem dos recursos e risco de lavagem, a relação constituí um mega conflito de interesse. Esse assunto será debatido por aqui em breve.
A essa altura já dá para desconfiar que nosso presidente não leu, ou pior, não entendeu nada do que estava escrito no livro. No campo da ilação, podemos imaginar que esse caco na matéria objetivou fazer uma média com o seu “parceiro”, o qual mantem acordos verbais e um ótimo relacionamento.
Vocês conhecem a clássica “parceria caracu”, não é mesmo?
STs
Citações:
“Não se olvide que a liberdade de expressão (de informar, de criticar, etc.) é um dos pilares centrais de uma sociedade democrática. A livre manifestação do pensamento é garantia constitucional, devendo ser assegurada em toda sua plenitude, nos vários veículos de comunicação, inclusive nas redes sociais”, me permitindo uma única alteração: Revue, “no caso concreto”.
No texto original de onde isso foi extraído, ainda há uma nota de rodapé usada:
“A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.” (Art, 220, caput, Constituição da República)‘.
E agora o ensinamento do mestre Nelson Rodrigues:
“Nada mais cretino e mais cretinizante do que a paixão política. É a única paixão sem grandeza, a única que é capaz de imbecilizar o homem”.