No início desse ano tenho abusado do uso da expressão transferência de riqueza, tanto em comentários sobre vendas de diretos da futura Liga, como em transações de jogadores.
No caso da ligas, a potencial transferência já foi objeto de análise na edição passada, ainda preliminar dada a opacidade que impera nesse meio do futebol.
No início desse ano tenho abusado do uso da expressão transferência de riqueza, tanto em comentários sobre vendas de diretos da futura Liga, como em transações de jogadores.
No caso da ligas, a potencial transferência já foi objeto de análise na edição passada, ainda preliminar dada a opacidade que impera nesse meio do futebol.
Já no caso de transações com jogadores, normalmente temos que esperar os processos com calotes diversos para poder ver o quanto se ganha na exploração de um clube de futebol entregue as traças.
Nessa edição 78, vou usar um dos poucos casos onde existem matérias e processos que nos forneceram informações que jamais seriam disponibilizadas pelos gestores do clube e pela imensa maioria de jornalistas que cobrem o dia a dia do Fluminense.
O ponto de partida é uma extensa matéria francesa da Hauts de France com a Mediapart e a Mediacités, com base em documentos vazados pela Football Leaks, onde a “maior venda de todos os tempos” do Fluminense foi muito bem esmiuçada em sua origem.
A reportagem francesa objetivava investigar o uso de terceiros pelo investidor Gérard Lopez, proprietário do LOSC, em especial na aquisição de percentuais em jogadores menores (de base). Os jornalistas entendiam que os investimentos eram meramente especulativos, “comprados como um lote cavalos de corrida, através de investidores e partilha de direitos. A famosa Third Party Owners (TPO)”.
Há uma infinidade de considerações que vão muito além do foco dessa edição.
Quem tiver interesse, eu recomendo fortemente a leitura integral do link disponibilizado acima.
As origens da problemática partilha de direitos do Gerson
A reportagem francesa faz um resumo preciso sobre a partilha dos direitos do Gerson aos seus 16 anos de idade, primeiro sob a ótica do investigado e a empresa que ele constituiu para o investimento especulativo em jovens promessas do futebol:
A MPI adquire 15% de seus direitos em 17 de junho de 2013 do clube Fluminense (Rio de Janeiro), e mais 7,5% em 9 de setembro de 2013, de uma agência de esportes brasileira, BR Foot, 22,5% no total. Gerson tem então 16 anos de idade.
Contudo, a partilha de direitos começou a ocorrer alguns anos, quando o atleta nem tinha idade para ter um contrato profissional:
Há dois anos, em 10 de setembro de 2011, 20% dos direitos de Gerson já tinham sido transferidos para uma empresa brasileira chamada MDC. O que o clube e os pais do jogador parecem ter esquecido. Em agosto de 2015, quando eles descobriram que Gerson está prestes a ser vendido para o AS Roma, os líderes do MDC se recordam das boas lembranças do Fluminense e os levam a processo judicial para reclamar seus direitos.
Quando a venda é concretizada para a Roma, que a registrou em seus livros pela quantia de EUR$18.9 milhões, esse grupo que detinha mais de 100% dos direitos do atleta precisou entrar em acordo, ficando acertado remunerar a MDC em 10% da transação. Na sequência dou mais detalhes dessa partilha.
O ápice da confusão na partilha de direitos
Ao final de 2013, aos 16 anos, quando poderia assinar seu primeiro contrato como profissional, Gerson já era jogador de um fundo de investimento cuja cadeia societária remete ao paraíso fiscal das Ilhas Virgens.
Seus direitos eram compartilhados com a Traffic e com a desconhecida MDC, de um empresário abastado de Araruama.
Quem a essa altura conhecia o futebol de um garoto de 16 anos? Ele começou a ser negociado aos 14, segundo os processos originários dos diversos calotes que ocorreram nessa transação.
Como essa estrutura que tem até um ex-gestor do Barcelona localizou o menino Gerson?
Para todos se situarem, Gerson foi convocado pela primeira vez para uma seleção sub20 no final de 2014, passando a condição de “Jóia de Xérem” e ativo valioso do Fluminense durante 2015. O fundo o adquiriu quase 2 anos antes do seu boom. Os outros investidores praticamente 4 anos antes.
A MPI/Mangrove já apareceu desde o início como detentora de parte dos direitos, tendo 22.5% através de 2 compras em 2013, ano no o jovem atleta já poderia começar a ser formalmente fatiado com interveniência do Fluminense. Nessa época o TPO ainda não era proibido.
A reportagem francesa informa que a partir de 20 de setembro de 2011, 20% do Gerson já seriam de propriedade da MDC. Algo para lá de informal e que não poderia contar com a interveniência do Fluminense, afinal se tratava de um menor com 14 anos.
A pitoresca figura do pai do Gerson, segundo reportagem na época do GE e diversos outros relatos que a corroboram, se aposentou e passou a conduzir a carreira do filho justamente no mesmo ano dessa transação junto a MDC.
Um garoto de 14 anos, cujo custo de formação era integralmente arcado pelo Fluminense, já tinha pelo menos 20% de seus direitos atrelado a um empresário com negócios em Saquarema e Araruama, não relacionados ao futebol.
No primeiro contrato ainda vem a informação que a BRFOOT detinha 7.5% dos direitos do Gerson, que passavam a ser da MPI/Mangrove, ou seja, o menor de idade em seu projeto de carreira, também andou negociando direitos com pelo menos mais um empresário, talvez dois, pois não há muito rastro sobre a aquisição de 7.5% pela Traffic.
Só que nesse ponto há conflito entre BRFOOT, MPI e MDO, o que a reportagem francesa chama de mutreta pois aparentemente andaram vendendo a mesma coisa para dois investidores. Mas eles se acertam e a MDO é agraciada com 10% dos direitos, enquanto a MPI fica com 12,5% (a BRFOOT acabou sendo remunerada pelos investidores externos com a compra dos 7.5%).
Transferência de riqueza
Os franceses, lá em 2017, já contabilizavam esse incrível processo de transferência de riqueza que é investir em jovens promessas, contando com a complacência de clubes endividados na partilha de direitos:
As contas da MPI mostram que a empresa comprou 361,355 euros em direitos de jogador em 2013, ano em que investiu em Gerson. O retorno sobre o investimento é significativo, uma vez que a MPI receberá cerca de 1,8 milhões de euros do Fluminense sobre a transferência do jovem jogador para Roma. O ganho de capital pode, portanto, ser estimado em pelo menos 1,4 milhões de euros. Mais de quatro vezes a aposta inicial!
Os franceses só não contavam com a incrível capacidade de calote do Fluminense! Mas veremos isso no detalhe na edição 79.
Pesquisa “arqueológica”
Vamos voltar ao ano de 2013.
Esse ano foi extremamente conturbado, afinal quase caímos, tivemos eleições e para completar o Fluminense entendeu ser “estratégico” não revelar a tabela com os percentuais de direitos econômicos de seus atletas sob contrato, o que lhe custou até uma ressalva do auditor independente:
O que será que o Fluminense quis esconder ao omitir a apresentação da tabela?
Seguindo as “escavações”, encontramos uma nota anexa ao balanço que trata das vendas de direitos econômicos:
Onde está a menção a venda de parte dos direitos do Gerson? Não há!
No ano seguinte, para fugir da ressalva, o Fluminense apresenta a tabela, mas limitada a 2014. O auditor na época fez vista grossa para aquilo que tinha apontado como ressalva em 2013 e que continuava não apresentado.
Mas Gerson aparece com 70%:
Gerson se profissionalizou em 2013 e em 2015 foi vendido. Nesses 3 anos o Fluminense nunca reportou negociações sobre os percentuais de direitos econômicos do atleta.
Ao que tudo indica a Traffic também conseguiu uma fatia do Gerson antes dos 16 anos, totalizando 4 empresários investindo no projeto Gerson.
Quando a Traffic obteve percentual dos direitos?
Esse é um dos grandes mistérios. A única certeza é que não entrou dinheiro nos cofres do Fluminense.
Em setembro de 2011 a MDC tinha 20% dos direitos.
Entre julho e julho de 2013, com pleno conhecimento e interveniência do Fluminense. a MPI adiquiriu 15% diretamente do Gerson e 7,5% da BRFoot. A BRFoot, portanto, tinha esses 7.5% anterior ao primeiro contrato.
Confusão generalizada, ficou acertado entre as partes que o Fluminense teria 70% (reflete nos quadros das demonstrações financeiras, como vimos acima), MPI 12,5%, MDC 10%, totalizando 92,5% dos direitos.
Quando os processos dos calotes começaram a surgir, a Traffic surgiu com um percentual de 7,5%. Não há elementos nos processos sobre a data de aquisição desse percentual, muito menos algum indicio de negociação que tenha sido apontado nas notas explicativas.
As cessões gratuitas de direitos
A cessão gratuita de direitos é algo conhecido no meio do futebol e a maioria das pessoas acha isso normal. “É assim que se faz futebol”, famigerado clichê de boleiros amadores.
Os que desconhecem essa prática podem passar a observar, que ao longo dos anos, praticamente todos os novos jogadores que aparecem na tabela de direitos econômicos não são de fato 100% do Flu. Vocês acham até alguns casos mais ronde temos 100%, mas não são atletas com mercado, ou que tem comissões contratadas nem sempre informadas.
Qualquer cessão parcial de direitos que seja remunerada precisa ser informada nas notas do balanço. Vejam com seus próprios olhos como raramente há apuração de receita nesses primeiros contratos.
Existem situações ainda onde se cedem mais direitos para reter o atleta. Os percentuais se alteram na tabela, mas não aparece um centavo de receita.
Em todos esses casos, tem algum investidor e atleta fazendo um bom dinheiro nas costas do Fluminense.
Leis e normas que deixam brechas…
O contrato de trabalho do atleta profissional de futebol é disciplinado especificamente pela Lei 6.354/76 e pela Lei 9.615/98 (Lei Pelé) e seu respectivo regulamento, o Decreto n° 2.574/98, com as alterações procedidas pela Lei n° 9.981/00 e pela Lei n° 10.672/03.
A Lei Pelé estabelece que o primeiro contrato só pode ser assinado a partir dos 16 anos.
A Lei define ainda que a partir dos 14 anos o atleta pode receber uma bolsa, respaldada por um contrato, mas sem que haja vínculo empregatício.
Não há portanto vedação legal que impeça a ação dos investidores (através de contratos de gaveta) em qualquer idade do atleta, enquanto os clubes ficam amarrados para tentar formalizar os direitos econômicos até os 16 anos.
Há, portanto, um completo desequilíbrio de forças, sem isonomia e pasmem, não há um único clube que se rebele quanto a isso. Dá margem a ilação que todo esse mundo paralelo de investidores e paraísos fiscais também é atrativo para gestores de futebol.
Há ainda os regulamentos da FIFA, que vedam transferências de menores de 18 anos, mas nada que não possa ser contornado nesses contratos, ou até mesmo, depois da vedação do TPO, com os contratos de comissões.
Resumo da ópera
Todas as reportagens e balanços do Fluminense nos levam a conclusão que foram cedidos gratuitamente 30% dos direitos econômicos ao próprio atleta, que por sua vez realizou algumas vendas em seu próprio e exclusivo favorecimento. Ficamos a ver navios, arcando com o custo integral de sua formação, salários após profissionalização, etc.
O Fluminense, pelo menos desde o advento da Lei Pelé, sempre é uma mãe para atletas e empresários.
Serve de vitrine e custeia o dia a dia dos projetos de investimento especulativo de terceiros. Cabe ao investidor aplicar seu tempo e recurso para realizar a venda o mais rápido possível, o que invariavelmente inviabiliza o retorno esportivo de qualquer um, e que de uns tempos para cá, tem implicado em valores cada vez mais baixos das negociações.
A única transação quantificável desses direitos cedidos é justamente a da MPI, através da reportagem francesa: 361 mil euros. Não há qualquer informação sobre quanto a MDC investiu no atleta, nem a BRFOOT, muito menos a Traffic. Mas aplicando uma regra de 3 com base nos 22.5%, dá para imaginar que essas negociações podem ter rendido algo em torno de 120 mil euros. Uma bela doação de direitos que pode ter rendido por baixo quase meio milhão de euros.
30% do valor noticiado da venda resultam em 4.8 milhões de euros cedidos a terceiros. Podemos estimar que os 480 mil euros foram multiplicados por 10 nessa empreitada.
O Fluminense parece ser incapaz de informar o quanto investiu, sozinho, na formação e remuneração do Gerson, para podermos comparar o retorno de cada um. Mas enquanto o investidor ganha diretamente os $4.8 milhões de euros, o Flu ainda precisa pagar taxas, intermediários e tudo mais, além de juros de uma operação de adiantamento de receita (mas isso será assunto da próxima edição #79).
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